Introdução
Houve um tempo em que a obra missionária era vista como o direito divino concedido a certas pessoas de certos lugares de converter ao cristianismo outras pessoas de outros lugares. O alvo das missões era alcançar os chamados “pagãos” que viviam em terras distantes, sem uma religião autêntica ou sequer a noção do Divino. O principal foco da atividade missionária durante o século 19 era ganhar almas e plantar igrejas; os males sociais da época, que distorciam o evangelho de Cristo, eram completamente ignorados. Com a chegada do século 20, e sua ênfase no ecumenismo, e do século 21, e sua predominância do “cristianismo global”, essa dinâmica mudou. As missões já não são vistas em termos paroquiais, nem o evangelho é considerado desprovido de poder para a transformação social. As tendências missionais do século 21 criaram um contexto que torna o networking, ou as conexões humanas, o caminho desejável para a obra missionária mundial.
O contexto missional
Ao longo do último século, houve uma evolução tanto na compreensão da obra missionária quanto na sua execução. Allen Yeh afirma que, há um século, a obra missionária era unilateral e unidirecional, partindo do Ocidente para o restante do mundo.1 Estava atrelada ao expansionismo europeu, negligenciando seu papel como agente de transformação das sociedades humanas e como impulsionador do envolvimento de cristãos de todos os lugares. Em 1810, contudo, William Carey popularizou a ideia de que a Grande Comissão era uma responsabilidade de todos os cristãos e defendeu a criação de agências missionárias, contrariando assim o entendimento que persistia há tempos de que a Grande Comissão era aplicável aos discípulos originais e posteriormente àqueles que vinham do Ocidente e do Norte. Os missiólogos, um século depois, atribuíram à visão de Carey a convocação da primeira conferência missionária internacional, realizada em Edimburgo, Escócia, em 1910.
Essa conferência simboliza um momento decisivo na história da igreja global, pois atraiu representantes das igrejas católica, ortodoxa e protestante, e encerrou o impetuoso “grande século de missões”, como ficou conhecido o século 19. Allen Yeh cita a afirmação de Brian Stanley de que Edimburgo foi o berço do movimento ecumênico moderno, que, por sua vez, acabou resultando no estabelecimento do Conselho Mundial de Igrejas, em 1948. A essa altura, a palavra “ecumenismo” havia assumido um novo significado, que reflete, nesse contexto, o uso que Paulo faz da imagem do corpo para se referir à unidade e à diversidade do corpo de Cristo. O termo expressa a ideia de cooperação e colaboração nas comunidades cristãs e entre elas, apesar das diferenças teológicas e eclesiais. Abrange toda a Igreja no que se refere à cooperação entre as denominações, mas também diz respeito à representação de cada nacionalidade ou grupo étnico, independentemente da filiação eclesiástica.
David Bosch descreveu o evento como uma notável conferência evangélica ecumênica.2 Baseando-se no trabalho de Hans Küng, Bosch analisou a história da obra missionária destacando seis mudanças paradigmáticas.3 O último dos seis paradigmas mencionados é o paradigma ecumênico emergente, que destaca a importância de os cristãos aprenderem a viver e testemunhar juntos. Bosch afirma que o paradigma ecumênico surgiu como resultado do declínio do domínio do Ocidente sobre a obra missionária e o crescente respeito pela globalização e por outras culturas e expressões religiosas. A realidade do ecumenismo, por sua vez, abre a porta para o surgimento de um novo paradigma conhecido como “cristianismo global”.
O “cristianismo global” é definido por Allen Yeh como o deslocamento do centro gravitacional do cristianismo [Norte Global] para os dois terços do mundo [Sul Global], fato que ocorreu na segunda metade do século passado.4 Alguns missiólogos, contudo, preferem usar o termo “Mundo Majoritário”, por ser mais neutro, dadas as dimensões da Ásia, África e América Latina, apesar da preocupação com comunidades minoritárias étnicas no Mundo Ocidental que possam se enquadrar nessa classificação. Um dos sinais desse fenômeno é o surgimento de novos centros missionais. Entre o final do século 20 e o início do século 21, tornou-se evidente que, enquanto a igreja na Ásia, África e América Latina testemunhava um crescimento numérico espetacular, surgia o significativo desafio de uma cultura pós-cristã que impactava a Europa e a América do Norte. Hoje, mais de 55% dos cristãos no mundo estão no Mundo Majoritário. Não se trata, contudo, de um fenômeno novo, visto que o cristianismo experimentou um crescimento espetacular na Ásia e na África desde o seu início.
Philip Jenkins observa que a igreja batalhou por sua existência nos primeiros mil anos do cristianismo na Ásia e na África, mas essa história raramente é contada no Ocidente.5 Jenkins argumenta que o fenômeno do cristianismo global não é uma constatação, mas uma restauração. Oferece contextualização no sentido de que nenhuma cultura pode reivindicar o conhecimento exclusivo de Deus, pois ninguém tem uma imagem completa de Deus e da inovação de um renascimento teológico. É na união de cristãos do Mundo Majoritário e Minoritário que surgirão ortodoxias inovadoras nos moldes de Calcedônia, de Agostinho e de Lutero, dando continuidade à Reforma. Visto que os cristãos do Mundo Majoritário atingiram a maioridade, por assim dizer, são necessários esforços deliberados e intencionais para que passem da dependência para a interdependência por meio de ações colaborativas e de networking. A realidade do cristianismo global levou ao amadurecimento da igreja global, superando a arrogância, a superioridade e o monopólio regional e promovendo a transição do egoísmo e da intolerância denominacional para um espírito ecumênico marcado por tolerância, respeito e colaboração religiosa. A questão então é: “Em face dessas mudanças, qual a melhor forma de realizar a obra missionária no século 21?”
A koinonia missional como base para as ações missionais de networking
A obra missionária no século 21 deve ser compreendida como integral, confirmando simultaneamente os aspectos de evangelismo e ação social cristã. O chamado da igreja envolve: multiplicar-se por meio de ações evangelísticas e de discipulado; suprir as necessidades do mundo por meio da compaixão e da justiça; e preservar o meio ambiente por meio dos cuidados com a criação. Segundo o Pacto de Lausanne, de 1974, a responsabilidade de comunicar o evangelho integral ao mundo todo recai sobre toda a igreja (CTC VI).6
O contexto necessário para a execução da missão integral é a koinonia missional. A palavra grega koinonia significa companheirismo, parceria e solidariedade. Koinonia missional, portanto, expressa a ideia do povo de Deus em parceria tanto com Deus como uns com os outros para a transformação integral da criação de Deus, que geme por restauração. Quando Adão e Eva abusaram de sua liberdade, a corrupção foi introduzida na experiência humana; Deus coloca em ação seu plano missional para restaurar o mundo corrompido, por meio de uma parceria [aliança] com os israelitas que, eventualmente, não entendem plenamente seu chamado missional. Foi nesse contexto de parceria com os israelitas e seu fracasso em executar a obra missional de Deus que se dá a vinda de Cristo, redefinindo a obra missionária, conduzida inicialmente pelos discípulos e posteriormente pela igreja, e reafirmando a parceria na missão cujo foco é mundial e sua ação é extensiva e abrangente.
Esse foi o tipo de missão exemplificada por Paulo em suas viagens e relações missionais. Em 1Coríntios 3.9, ele declara: “Pois nós somos cooperadores de Deus; vocês são lavoura de Deus e edifício de Deus”, em resposta ao surgimento do culto à personalidade na igreja de Corinto. A koinonia missional, portanto, busca complementaridade, e não competição; divisão do trabalho, e não monopólio; missão compartilhada, e não propósito dividido; status de igualdade, e não de desigualdade. Andrew Walls faz uma observação interessante em relação à convergência horizontal de disciplinas no mundo de hoje.7 Ele observa que os engenheiros estão colaborando com os biólogos para compreender a resistência da concha com o intuito de aplicá-la à blindagem de tanques e carrocerias de automóveis. O objetivo da analogia é destacar a colaboração e a interdependência necessárias para o engajamento no avanço e consolidação missional neste século.
No contexto do cristianismo global, convergem uma diversidade de dons, pessoas e recursos materiais. Os dois lados da divisão missional precisam um do outro, pois já não se trata de “missão do Ocidente para o restante do mundo”, mas de “missão de todos para todos os lugares”, incluindo ambientes locais, quintais e vizinhos. A missão no século 21, portanto, é policêntrica, polifônica e multidirecional. Nenhuma raça, cultura, região ou comunidade eclesiástica pode reivindicar o monopólio missional, pois todos compartilham de uma mesma humanidade, de uma mesma vocação e de uma mesma missão. Desse modo, o princípio da koinonia missional não admite atitudes paternalistas, exclusivistas, arrogantes, competitivas ou de isolamento. É um chamado à parceria e à colaboração entre pessoas iguais com uma diversidade de dons, recursos e números; todos trabalhando para a glória de Deus com um mesmo propósito e missão. Em vez de uma missão independente, a koinonia missional chama a igreja missional à interdependência.
Os princípios que embasam a koinonia missional não se aplicam apenas a parcerias interculturais, mas também ao contexto de regiões e de grupos étnicos; de fraternidades ministeriais e relações ecumênicas; entre comunidades religiosas e não religiosas. O contexto da obra missionária cristã no século 21 é o ponto onde as religiões se encontram e para o qual as comunidades cristãs convergem. É preciso que se identifique, portanto, uma forma de confirmar nossa humanidade e nosso interesse comum pelo florescimento das comunidades humanas, através de parcerias e redes de conexões. Dessa forma, haverá menos desperdício e duplicidade de recursos. Este é o desafio do século 21: reconhecer a causa que nos une e a nossa vocação compartilhada, crendo que fomos agraciados por Deus, em Cristo, com dons diversos que se complementam, com o poder e a sabedoria do Espírito Santo, como comunidades e regiões distintas, para buscar cumprir nossa vocação neste mundo por meio de parcerias e redes de conexões. Juntos podemos fazer muito mais!
Conclusão
Portanto, venhamos à mesa com humildade, reconhecendo que somos falhos e não temos todas as respostas. E que precisamos uns dos outros não para contender, mas para complementar; não para reprimir uns aos outros, mas para nos submetermos ao Senhor da obra; não para reivindicar o monopólio missional, mas para confirmar a nossa vocação comum. Considerando o nosso compromisso com o trabalho em conexão com outras pessoas no âmbito da koinonia missional, que evitemos os erros da atividade missionária no século 19. O avanço missional que está acontecendo no Mundo Majoritário ou Sul Global não deve ser visto como um privilégio missional, mas como o posicionamento de todo o povo de Deus como servos-parceiros. Assim, em vez de nos preocuparmos com a noção de missão reversa, que o foco esteja na parceria, na rede, na colaboração e na interdependência.8
Endnotes
- Allen Yeh, Polycentric Missiology (Illinois: InterVarsity Press, 2016).
- David Bosch, Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission (Maryknoll, NY: Orbis, 2022).
- David Bosch, Transforming Mission (Maryknoll, NY: Orbis, 1991).
- Yeh, Polycentric Missiology.
- Philip Jenkins, The Next Christendom: The Coming of Global Christianity (New York: Oxford University Press, 2002).
- Nota da Editora: Veja Uma visão radical de toda a igreja, deWonsuk Ma, O evangelho todo e a organização da comunidade, de Alexia Salvatierra, e O mundo todo e os não alcançados, de Joshua Bogunjoko, na Análise Global de Lausanne, maio/2023, https://lausanne.org/global-analysis/may-2023-issue-overview.
- Andrew Walls, The Missionary Movement in Christian History: Studies in the Transmission of Faith (Maryknoll, NY: Orbis, 1996).
- Nota da Editora: Veja Integração e colaboração inovadoras no campo missionário, de Steve Sang-Cheol Moon, na Análise Global de Lausanne, setembro/2023, https://lausanne.org/global-analysis/innovative-integration-and-collaboration-on-the-mission-field-a-holistic-intercultural-approach.