Global Analysis

O trabalho de transformação de Deus no mundo

definindo "transformação" na missão de Deus

Rupen Das set 2022

Se você navegar pelos sites de qualquer organização cristã que está envolvida no alívio da pobreza e injustiças sociais você não conseguirá evitar a palavra transformação. Se conversar com universitários sobre suas aspirações verá que não é incomum ouvir alguns deles falando sobre querer mudar o mundo. Imagens de crianças emaciadas no Iêmen, cidades devastadas na Ucrânia, Síria, e Iraque e hordas de refugiados, juntamente com histórias sobre racismo, terrorismo, guerra de gangues, tráfico de pessoas e pobreza crônica são tão corrosivas que acabam destruindo qualquer traço de dignidade humana. Essas imagens nos lembram diariamente que nosso mundo precisa de mudança e transformação.

O que é a transformação?

A palavra “transformação”[1] faz parte do vocabulário da maioria das ONGs cristãs focadas no desenvolvimento e é até usada por agências governamentais como a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). No entanto, estamos fazendo promessas que não poderemos cumprir ao prometer transformação para os pobres? Estamos criando frustração e decepção ao encorajarmos as pessoas a mudarem o mundo? A pergunta que fica é: o que queremos dizer quando falamos de “transformação” e “querer mudar o mundo”?

Estamos criando frustração e decepção ao encorajarmos as pessoas a mudarem o mundo?

O cristianismo evangélico tem dificuldade em analisar se a missão de Deus foca somente nas dimensões espirituais da vida e vida eterna ou se ela deveria também abordar as questões de pobreza e injustiça social que vemos no mundo atualmente.[2] Para aqueles que acreditam que nosso testemunho deve acontecer tanto em palavra quanto em ação, a natureza exata das ações não está clara.

Como que nós, seguidores de Cristo, podemos responder à realidade da pobreza e do mal que nos confronta neste mundo globalizado? Uma reação humana, quer sejamos cristãos ou não, é uma sensação profunda de que o mundo não deveria ser deste jeito. Portanto, focamos em fornecer aos pobres as necessidades básicas da vida para que possam viver com dignidade. Mas, ao focarmos na justiça social esperamos que mudanças duradouras e permanentes possam acontecer.

Como cristãos somos chamados a fazermos uma diferença nesse mundo – sermos o sal e luz; sal que evita mais degradação e a luz que supera a escuridão. No novo testamento, a exortação é de “fazer o bem” (Gl 6.9-10), uma frase que o apóstolo Paulo usava com regularidade, referindo-se às contribuições que fazemos à vida cívica e comunitária. Os atos de bondade que Paulo encorajava focavam nos pobres e nos problemas sociais.[3] Portanto, onde se encaixa o conceito de transformação?

O desafio da transformação

O desejo de “mudar o mundo” é digno, mas a realidade é que a transformação é complexa e, frequentemente, é compreendida de forma errônea. A transformação não acontece simplesmente ao satisfazermos as realidades físicas do mundo e focarmos somente na melhora da qualidade de vida. Não podemos atingir transformação através de uma série de atividades. Projetos e iniciativas que não tratam dos valores e atitudes subjacentes têm uma grande probabilidade de não darem certo. Para que a mudança seja sustentável, atitudes, valores e éticas que frequentemente tem seus fundamentos nas dimensões espirituais da vida também precisam ser abordadas. As barreiras sociais e políticas que retém as pessoas na pobreza e destituição são raramente abordadas pelos projetos de desenvolvimento.

Um artigo recente da Christian Relief, Development and Advocacy (“Alívio, desenvolvimento e advocacia cristã”, em tradução livre) propõe indicadores baseados em evidências para medir o impacto do reino (provavelmente levando à transformação). A responsabilidade (accountability) é crítica e deve ser central em qualquer programa. Muitos dos indicadores propostos no artigo são aproximações para tentarmos discernir se há uma vida espiritual e um senso de missão.

O desejo de “mudar o mundo” é digno, mas a realidade é que a transformação é complexa e, frequentemente, é compreendida de forma errônea.

Subodh Kumar escreve: “A missão de todas as Organizações Centradas em Cristo (OCCs) é estender o reino de Deus na Terra, que se manifesta através de transformação individual e social.”[4] O que falta é o conceito do que é o “reino”. É possível falar sobre estender o reino de Deus sem falar sobre o rei desse reino e sem trazer tudo para debaixo de sua autoridade? Como que isso é diferente da ideia de estender e estabelecer o reino de Deus aqui na terra como vimos nas tentativas falhadas da evangelização social de 1900? Deus é o único que está construindo seu reino e ele nos convida a entrar nele.[5]

O teólogo Reinhold Niebuhr escreve sobre a natureza falha dos indivíduos e sociedade, que impede a transformação de acontecer.

[O homem é] …abençoado e amaldiçoado com uma imaginação que estende seus apetites para além da subsistência. A sociedade humana nunca irá escapar do problema da distribuição igualitária de bens físicos e culturais que oferecem a preservação e satisfação da vida humana.[6]

Enquanto alguns evangélicos equiparam a transformação com construção do reino, há outros que equiparam o conceito bíblico do shalom do antigo testamento com a ideia de transformação; que a transformação do mundo é o shalom que Deus prometeu, e, portanto, é o que o povo de Deus deve almejar atingir através do planejamento de desenvolvimento da comunidade.

John Stott nos avisou contra isso. Enquanto o antigo testamento descreve o conceito, incluindo o bem-estar político e material, isso se limita à Israel antiga.[7] No novo testamento, a paz que nos é prometida é a reconciliação e comunhão com Deus através de Jesus Cristo e reconciliação uns com os outros (Ef 2.13-22). No entanto, pode haver bênçãos materiais quando somos filhos de Deus que superabundam e abençoam outros. Stott escreve sobre o shalom:

Shalom é a benção que o Messias traz para seu povo. A nova criação e a nova humanidade serão vistas naqueles que estão em Cristo (2 Co 5.17) …vemos a justiça do reino de diversas formas, como se estivesse “transbordando” em partes do mundo…[8]

Uma nota discordante

Ao não reconhecer a realidade do pecado e sem saber como lidar com ela, acabamos por prometer aos pobres uma mudança sustentável às suas circunstâncias pessoais que não podemos entregar ou garantir.

Infelizmente, nenhuma das discussões atuais sobre pobreza e justiça social abordam a realidade humana do pecado – o pecado que está dentro do coração de cada humano e a pecaminosidade inerente em estruturas sociais, legais e econômicas.[9] O pecado, na forma de maldade, arrogância, poder e ganância não é somente a causa do que está errado com o mundo, mas é também o que impede uma transformação duradoura. Assim que chegamos em algum grau de mudança social ou política, o mal ressurge de alguma forma ou de outra para destruir, diminuir ou enfraquecer o que está sendo alcançado.

Ao não reconhecer a realidade do pecado e sem saber como lidar com ela, acabamos por prometer aos pobres uma mudança sustentável às suas circunstâncias pessoais que não podemos entregar ou garantir. Também nos destinamos ao fracasso quando o que alcançamos acaba minado por causa da ganância de indivíduos ou facções poderosas da sociedade.

Se o pecado humano é uma realidade enraizada em nosso mundo, a transformação social e política é possível? Será um conceito bíblico, algo que nós cristãos somos chamados a alcançar?

A transformação de quem?

Em nenhum lugar nas escrituras somos chamados a transformar o mundo.[10] No entanto a transformação é um conceito bíblico válido porque é Deus que transforma e ele nos convida a participar dessa transformação com ele. Deus já começou o processo de redimir os seres humanos e a criação e transformará tudo quando o tempo criado se fundir à eternidade. Desse lado da eternidade, os cristãos devem “fazer o bem a todos” (Gl 6.10) e sermos mordomos fiéis do mundo que Deus criou (Gn 1.28).

Entretanto, entre profissionais de desenvolvimento cristãos, frequentemente o poder de Deus não é parte funcional de sua consciência no planejamento de transformação social. A realidade é que o desenvolvimento da comunidade e esforços de transformação são antropocêntricos, com os humanos se vendo como parte central e como quem realiza a transformação social. O foco fica em mobilizar a comunidade, em acertar a avaliação da mesma e no design do projeto, em implementar tudo de forma correta e ao mesmo tempo garantir a participação e propriedade local, além da sustentabilidade. Assumimos que se isso for feito de forma correta, a transformação ocorrerá. Se não der certo é porque houve uma falha no processo de planejamento.

Enquanto todas essas preocupações são importantes, o que ignoramos é que Deus é o autor da história e Ele está envolvido na ascensão e queda de reinos, além de estar presente nas comunidades que buscam formas de cumprir Sua vontade e estabelecer seu reino. Nossas orações deveriam ser, “Senhor, como já estás trabalhando, onde e como o Senhor quer que nos envolvamos? Venha teu reino, seja feita a tua vontade nessa comunidade, assim como nos céus”, em vez de “Senhor, abençoe o trabalho de nossas mãos que nós mesmos planejamos.”

Existe uma grande diferença entre acreditar que podemos transformar o mundo e em sermos parceiros de Deus na transformação que ele já está realizando.

Existe uma grande diferença entre acreditar que podemos transformar o mundo e em sermos parceiros de Deus na transformação que ele já está realizando. Ron Sider identifica o que a verdadeira motivação deve ser quando ele afirma que “Trabalhar pela paz e justiça não é baseado no pensamento ingênuo que haverá transformação – mas sim na compreensão da direção em que a história caminha.”[11] Deus está no processo de estabelecer sua autoridade em um mundo rebelde e um dia ele irá reinar aqui na terra em glória.

O teólogo N.T. Wright baseia a transformação nas doutrinas gêmeas da criação e julgamento:

Deixe de lado o bom da criação e sobra o julgamento, no qual o mundo é jogado fora como lixo e ficamos sentados em uma nuvem incorpórea tocando harpas incorpóreas. Deixe de lado o julgamento e o que resta é o mundo rimbombando sem esperança exceto a esperança panteísta de ciclos intermináveis de existência e história. Junte a criação e julgamento e o resultado são novos céu e terra, criados não ex nihilo mas sim ex vetere, não do nada, mas do velho, pré-existente.[12]

É confortante que, em meio à raça humana falha e uma criação em decomposição, Deus não se esqueceu do bem que ele criou. Ele está tratando do mal e um dia completará a nova criação (ex vetere) que ele inaugurou com a ressureição de Cristo. Ele nos chama para trabalhar consigo como seus parceiros.

Não existe consenso sobre como seria essa transformação. Os pioneiros da história das missões modernas nunca falaram sobre transformação. Mas os documentos de pesquisa de Robert Woodberry registram o impacto dos missionários protestantes no oeste da África como elemento fomentador do início da democracia.[13] William Carey foi instrumental na abolição de sati[14]na Índia. William Wilberforce e a Seita de Clapham garantiram a abolição da escravidão no Império Britânico. Eles foram usados por Deus como agentes de mudança para um mundo melhor.

Participando na missão transformadora de Deus

Embora Deus não nos chame para transformar a sociedade, Ele nos chama a sermos testemunhas da realidade do reino de Deus e de seu Rei. Como povo de Deus vivendo em uma cultura que rouba a vida das pessoas, a forma de testemunhar e ser parceiro de Deus em sua missão é ao demonstrarmos compaixão,[15] defendermos a justiça[16] e proclamarmos o Redentor neste mundo pecaminoso e quebrado. [17]

Notas

  1. No antigo testamento, a palavra grega para transformação é metamorphoo, que significa mudar para outra forma, alterar-se. Essa palavra é usada na voz passiva quando se refere à transfiguração de Cristo. A implicação é que a mudança não é incremental, mas sim radical e integral. A maioria dos projetos de desenvolvimento de comunidades abordam mudança incremental e não possuem uma natureza verdadeiramente transformadora. Para uma discussão detalhada sobre o significado de transformação comunitária no desenvolvimento, veja Rupen Das, Compassion and the Mission of God: Revealing the Hidden Kingdom (“Compaixão e a missão de Deus: Revelando o reino escondido”, em tradução livre) (Carlisle: Langham Global Library), 135-163.
  2. For more on this debate and to understand the issues that undergird each position, see Das, Compassion and the Mission of God.
  3. N.T. Wright, Paul for Everyone: Galatians and Thessolonians (London: SPCK, 2002), 79.
  4. Subodh Kumar, ‘Toward Building Evidence of Kingdom Impact,’ Christian Relief, Development, and Advocacy 3, no. 2 (2022): 24–36.
  5. “Aquele que estava assentado no trono disse: ‘Estou fazendo novas todas as coisas!’” (Ap 21.5). O reino é de Deus e ele o está construindo. Devemos orar, “Venha teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus” (Mt 6.10)
  6. Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society: A Study of Ethics and Politics (New York, NY: Scribner’s, 1932), 1.
  7. Embora muitos dos reinos ao redor da antiga Israel eram mais prósperos e até mesmo viviam com certo grau de paz durante alguns períodos, o antigo testamento nunca atribui essa prosperidade ao shalom de Deus.
  8. John. R. W. Stott, Christian Mission in the Modern World (Downers Grove, IL: IVP Books, 1975), 31.
  9. The following have written extensively about sin embedded in social, economic, and political structures in society: Walter Wink, Engaging the Powers: Discernment and Resistance in a World of Domination (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1992); Niebuhr, Moral Man and Immoral Society: A Study of Ethics and Politics; Walter Rauschenbausch, A Theology for the Social Gospel (New York, NY: The MacMillan Company, 1917); Jayakumar Christian, God of the Empty-Handed: Poverty, Power and the Kingdom of God (Monrovia, CA: MARC, 1999).
  10. 10 O comando de buscar a justiça é dada à elite e aos poderosos na sociedade (Miquéias 6.8) e não aos pobres para lutarem por justiça.
  11. Ron Sider, Lecture, Acadia Divinity College, Acadia University, Wolfville, NS. May 27, 2013.
  12. N.T. Wright, ‘Jesus Is Coming – Plant a Tree!’ Plough, 2015, https://www.plough.com/en/topics/justice/environment/jesus-is-coming-plant-a-tree.
  13. Robert D. Woodberry, ‘The Missionary Roots of Liberal Democracy,’ American Political Science Review 106, no. 2 (2012): 244–74.
  14. A prática de queimar as viúvas nas piras funerárias de seus maridos falecidos.
  15. Gl 2.10, 1 Pe 3.8, Cl 3.12, 1 Jo 3.17, Pv 19.17, 22.9, 16, Tg 2.14-17
  16. Is 1.17, Mq 6.8, Zc 7.9-10, Pv 14.31, 22.22
  17. 1 Pe 3.15-16, Sl 96. 2-4, Mt 28.18-20, Rm 1.16

Crédito das fotos

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