O reino de Deus era um dos temas preferidos de Jesus.1 A igreja evangélica, porém, frequentemente ignora ou distorce esse tema essencial e se divide no que diz respeito às implicações desse reino.2 O resultado tem sido uma visão obscura e estratégias desconexas. A questão é: Qual é o significado do reino para a igreja nas missões globais? Esse tema torna-se ainda mais urgente agora que nos reuniremos no Quarto Congresso de Lausanne para “anunciar e demonstrar Cristo, juntos”.3
Igreja versus Reino
É importante abordar alguns equívocos teológicos relacionados ao tema. O primeiro: a igreja é o reino. Quando os dois se fundem, surgem problemas como a diminuição da glória futura do reino ou a visão exagerada da igreja como o objetivo final. Em Mateus 16.18–19, ekklesia e basileia são termos intimamente relacionados, porém referem-se a conceitos distintos.4 A ekklesia, aqueles que são chamados e confessam Jesus como Rei, dispõe das chaves da basileia, do reino, de todo o domínio de Cristo.5 A relação entre ambos se revela no sentido de que a igreja incorpora a natureza do reino de uma forma tangível, mas ainda não expressa a sua plenitude.6 As igrejas locais não foram concebidas para serem pequenos reinos isolados. Em vez disso, assim como uma placa de sinalização, elas retratam e apontam para o reino unificado, maior e eterno.
A visão correta do reino impulsiona a igreja na direção da missão global, e a tensão entre o “agora e o ainda não” aponta para uma lacuna que direciona nossa estratégia de oração. O problema é quando a igreja perde de vista esse objetivo e passa a existir como uma igreja desassociada do reino. Sem a visão do reino, as igrejas tornam-se naturalmente introspectivas, e o resultado é uma atuação isolada. Sabemos que ser igreja não se resume a frequentar cultos e encher bancos. A igreja é um corpo missionário e formador de discípulos que existe para cada pessoa e lugar.7 Se a visão é o reino, então a igreja é chamada a ocupar todos os espaços onde o reinado de Deus deve se manifestar para trazer o shalom. O Movimento de Lausanne chama isso de “impacto do reino em cada esfera da sociedade”.8
Considerando a bela e expansiva missão da igreja na terra, podemos refutar o equívoco de que haverá um reino sem igreja. Não há reino completo sem uma ekklesia de todas as nações. E esses santos não são “chamados” para apenas sentar e esperar. O Pacto de Lausanne declara: “A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo. A igreja ocupa o ponto central do propósito divino para com o mundo, e é o agente que ele promoveu para difundir o evangelho”.9 Em outras palavras, é obrigação e privilégio de todos os santos na terra anunciar o evangelho do reino (Mt 24.14) e demonstrar o reino (Mt 5.13-16) para que cada pessoa possa nascer de novo e fazer parte desse reino, tornando-se cada vez mais santificada no poder do Espírito para se parecer com seu Salvador (Jo 3.3; 2Co 3.18; Fl 1.6).
Se até esse ponto estamos de acordo, podemos concluir que Deus age para que sua igreja possa patentear, proclamar e povoar o seu reino e se preparar para ele. A questão é: O que podemos fazer na prática para recuperar essa realidade essencial? Há pelo menos quatro maneiras principais pelas quais a igreja pode mover-se, unida, em missões globais e ter um enfoque maior no reino: Missão, Unidade, Visão e Evangelismo.
Missão: fazer discípulos com mentalidade do reino
A ordem de Jesus foi: fazer discípulos (Mt 28.18) para os propósitos do reino. Sua visão era um reino, e seu desejo era que seus discípulos (embaixadores) estendessem o reino divino ao local de trabalho, ao lar e às comunidades locais. Christopher Wright propõe três mandatos missionais como expressão ampla desse chamado para fazer discípulos: edificar a igreja por meio do ensino e do evangelismo, servir à sociedade e cuidar da criação.10
A missão que tem o reino como foco revigora as igrejas locais para que se tornem comunidades discipuladoras por meio de reuniões, adoração, envio, escuta e serviço.11 Na igreja primitiva, as reuniões dominicais contribuíam também para a dispersão da segunda-feira que tornava o reino de Deus visível em todos os lugares, começando de onde estivessem.12 Hoje, lamentavelmente, como revela o Relatório de Status da Grande Comissão, apenas entre 5% a 16% dos líderes da igreja global responderam que viam as igrejas locais em seus contexto como “muito unidas por um compromisso partilhado com a Grande Comissão”.13 A solução é uma missão holística14 para levar o shalom e restaurar relacionamentos corretos e amorosos com Deus, com o próximo, com a natureza e consigo mesmo.
A missão global traz a ameaça da ambição orgulhosa. “Portanto, já que estamos recebendo um Reino inabalável, sejamos agradecidos e, assim, adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor” (Hb 12.28). Lembre-se de que nós recebemos o reino, não o alcançamos pelos meios deste mundo (Dn 7.27; Mt 18.3; Hb 11.10).15 Essa gratidão confiante e reverente leva a um estilo de vida sacrificial, à medida que nos desapegamos do que é temporal e passageiro. Jesus afirma: “Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino. Vendam o que têm e deem esmolas. Façam para vocês bolsas que não se gastem com o tempo, um tesouro nos céus que não se acabe” (Lc 12.32–33). Esse era o estilo de vida da igreja primitiva (At 2.42-47) e quando o resgatarmos, poderemos renovar a confiança16 na igreja e demonstrar uma influência social17 alinhada com o caminho de Deus.
Unidade: a missão unificada através da liderança colaborativa
Jesus orou por unidade a fim de que fôssemos testemunhas fiéis em nossa missão (Jo 17.20-23). Para alcançar esse tipo de unidade capaz de mudar o mundo, precisamos desesperadamente de líderes de caráter, cuja mente esteja voltada para o reino, que abracem a diversidade, tenham visão estratégica para todas as pessoas e promovam a comunhão através da humildade (Fp 2.1-4). A igreja é um corpo que precisa primeiramente ser saudável, por isso a ação colaborativa deve ser relacional antes de ser funcional. No fim das contas, as amizades missionais podem fazer mais pelo reino do que os contratos e as parcerias formais.18
A igreja deve repensar a liderança bíblica como uma forma de servir aos coerdeiros no reino; não como a missão de construir pequenos impérios. A ação colaborativa flui de um coração cujo foco é abençoar os outros. Celebramos as vitórias de nossos pares ou somos tomados do sentimento de inveja? Quando os líderes têm visão estratégica para suas organizações, igrejas e missões, a unidade virá naturalmente, desfazendo divisões históricas. Ralph Winter afirmou: “Devemos aceitar como legítimas e necessárias as estruturas representadas hoje na igreja cristã pela igreja local e pela organização missionária, e como parte do ‘Povo de Deus’, a Igreja”.19 Ambas merecem respeito e são necessárias para a obra do reino de Deus. Precisamos desesperadamente que a igreja, a organização paraeclesiástica e o local de trabalho operem em sinergia, unidos sob Cristo como o Senhor de todos os que estão empenhados em reconciliar com ele mesmo todas as coisas (Cl 1.20).
Visão: o impacto do reino para o mundo inteiro
Jesus era mestre em transmitir a visão por meio de parábolas e analogias, aplicando o conhecimento já adquirido à vida idealizada no reino. Uma visão clara e holística do reino tem o potencial de desafiar e mudar tanto os céticos quanto os cristãos apáticos. E. Stanley Jones afirmou que o reino é “a resposta total de Deus à totalidade de necessidades da humanidade”.20 Essa verdade deve encher nosso coração de alegria para que, por meio da nossa vida, o mundo possa ver e provar a bondade de Deus.
Uma imagem clara e convincente do reino ajudará os cristãos a encontrar um chamado integrado, no qual o “ministério” seja o serviço cristão por toda a vida “não importa onde estejam, o que façam ou quem sejam”.21 Todos os santos pertencem ao reino e com ele contribuem. E, à medida que cresce o envolvimento, multiplicam-se as novas ideias e iniciativas para alcançar todas as gerações e abranger todas as frentes de batalha: onde as pessoas vivem e aprendem, trabalham e se divertem, servem e fazem compras.
Jesus está edificando a sua igreja para o seu reino, e isso coloca em perspectiva a nossa visão e estratégia. O Pacto de Lausanne afirma: “Portanto, rejeitamos como sendo apenas um sonho da vaidade humana a ideia de que o homem possa algum dia construir uma utopia na terra. A nossa confiança cristã é a de que Deus aperfeiçoará o seu reino”.22 Nenhum líder, igreja ou organização irá “concluir a tarefa”. Essa é a razão pela qual a ação colaborativa23 é um tema central do Quarto Congresso de Lausanne. Esse tipo de colaboração que pode mudar o mundo acontecerá naturalmente à medida que a visão for clara e a estratégia, unificada, possibilitando que sejam supridas as “lacunas”24 identificadas nessa complexa conjectura cultural. E tudo isso decorre do gracioso convite de Cristo para nos unirmos em espírito de oração ao que Deus já está realizando, pois a obra começa, é sustentada e concluída pela ação divina.
Evangelismo: o evangelho do reino para cada pessoa
O reino será composto por todas as nações (Ap 5.9; Dn 7.14), portanto o evangelismo da igreja deve ser convincente, transcultural e sacrificial. Precisamos resgatar a visão do evangelismo que envia discípulos ao território inimigo com uma mensagem que reflete o peso e a grandeza do reino. Uma mensagem que não se restrinja à salvação pessoal, mas seja uma proclamação de que Cristo é Rei.25 No Pentecoste, Pedro afirmou: “Que todo Israel fique certo disto: Este Jesus, a quem vocês crucificaram, Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2.36). A boa notícia é que Deus reina através do Rei Jesus e isso fica especialmente evidente em sua ressurreição.26 Visto que o rei venceu a morte, o seu reino é poderoso, extensivo e eterno para todos os que a ele se unem. O evangelismo testifica que “o Reino de Deus está próximo” e depois explica como entrar nesse reino: “Arrependam-se e creiam nas boas novas!” (Mc 1.14-15).
Para que não releguemos a fronteira final da proclamação do evangelho a robôs, devemos lembrar que o testemunho do reino se dá por meio de palavras e ações, do amor sacrificial e da sã doutrina. Esses aspectos centrais, infelizmente, têm sido frequentemente divididos.27 Jesus ensinou, proclamou o reino e curou enfermos (Mt 4:23). Sua abordagem foi pessoal e integral para demonstrar o amor inclusivo de Deus pelas pessoas e a revelação de um reino tridimensional. O evangelismo, assim como a visão do templo de Ezequiel, oferece água viva que se torna mais profunda à medida que flui do santuário, “de modo que onde o rio fluir tudo viverá” (Ez 47.9).
Conclusão: toda a nossa vida pelo reino
Em Colossenses, o apóstolo Paulo referiu-se a Marcos, Aristarco e Justo como seus “cooperadores em favor do Reino de Deus” (4.11). Paulo via o seu ministério como um esforço colaborativo “pelo reino”. O jovem Ohm, um missionário na África do Sul, adotava orgulhosamente o slogan “pelo reino!” em conversas e reuniões. Essas não são meras palavras; trata-se de um lembrete profundo da nossa visão e de como podemos alcançá-la juntos.
Será que esse poderia ser o nosso grito de guerra para o Quarto Congresso de Lausanne e além dele? À medida que temos mais e mais clareza e paixão pelo reino, amplia-se também a noção de missão, unidade, visão e evangelismo. A igreja primitiva certamente entendeu isso: falar, perguntar, proclamar, encorajar, persuadir e expor sobre o reino (At 1.3, 1.6, 8.12, 14.22, 19.8, 20.25, 28. 23, 28.31). Nossos fiéis irmãos e irmãs viviam para o reino e os frutos que produziram não foram uma coincidência.28 Vamos também “buscar primeiro o reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6.33) e não hesitaremos em sacrificar nossas vidas para ver seu cumprimento. Que possamos seguir por esse mesmo caminho ancestral, lado a lado, “pelo reino!”.
Pai celestial, que possamos viver como cidadãos do reino hoje, para que o mundo possa provar da tua glória. Abençoa nosso serviço e a proclamação do reino. Suprime toda forma de competição entre nós. Solidifica nossa solidariedade e acende em nós nova visão e paixão pelo teu reino.
Endnotes
- O termo para “reino” no grego, basileia, é usado isoladamente 50 vezes no livro de Mateus em referência ao reino de Deus.
- E. Stanley Jones, The Unshakeable Kingdom and the Unchanging Person (McNett Press, 1972).
- The Fourth Lausanne Congress, accessed 23 May 2024, https://congress.lausanne.org.
- See Michael W. Goheen, Church and Its Vocation: Lesslie Newbigin’s Missionary Ecclesiology (Baker Academic, 2018).
- Howard A. Snyder, Models of the Kingdom (Wipf & Stock, 2001). Baseando-se nas parábolas e nos ensinamentos de Jesus, Synder sugere um modelo de 6 “polaridades do reino” que devem ser mantidas juntas enquanto consideramos como o reino de Deus atua no mundo pela perspectiva missional. O reino é ao mesmo tempo: presente e futuro; individual e social; espiritual e material; gradual e culminante; ação divina e participação humana; e centra-se na igreja, mas não se limita a ela. Gregory Crofford oferece um resumo útil e uma resenha do livro em “Howard Snyder on the Kingdom”, blog pessoal, 7 de julho de 2012, ://gregorycrofford.com/2012/07/07/howard-snyder-on-the-kingdom/.
- Hugh Halter and Matt Smay, Tangible Kingdom: Creating Incarnational Communities (Josey-Bass, 2008).
- Veja aqui e aqui os quatro pilares do Movimento de Lausanne: o evangelho para cada pessoa; igrejas discipuladoras para cada povo e lugar; líderes como Cristo para cada igreja e setor; e o impacto do reino em cada esfera da sociedade. Veja também o artigo de Dave Benson: “Cumprindo o mandato do discipulado: Fundamentos sobre igrejas discipuladoras para cada povo e lugar” (Junho/2024), https://lausanne.org/pt-br/sobre-pt-br/blog-pt-br/cumprindo-o-mandato-do-discipulado.
- Veja Michael Oh falando de sua visão no 2019 Lausanne Global Workplace Forum.
- Covenant pt-6
- Christopher J. H. Wright, The Great Story and the Great Commission: Participating in the Biblical Drama of Mission (Baker Academic, 2023).
- See examples in the early church in Acts 2:42–47, 6:1–7, and 13:1–3.
- Neil Hudson, Scattered and Gathered: Equipping Disciples for the Frontline (IVP, 2019).
- “Discipulado na Grande Comissão: Importância da Grande Comissão”, em Relatório de Status da Grande Comissão, Movimento de Lausanne (maio/2024), https://lausanne.org/pt-br/report/discipulado-na-grande-comissao.
- Veja “Integral Mission: There is no biblical dichotomy between evangelistic and social responsibility”, acesso em 23 de maio de 2024 accessed 23 May 2024, https://lausanne.org/network/integral-mission.
- 15. Jones, Unshakeable Kingdom, 155, 253, 291. See also Darrell L. Guder, Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998), 93–97.
- Assista Dave Benson e Matthew Niermann, “The Dynamics of Trust: How the Global Trust Deficit Impacts Mission, the Rise in Self-Trust, the Impact of Echo Chambers on Gospel Outreach and the Role of Church in Rebuilding Trustworthy Communities”, acesso em 23 de maio de 2024, https://lausanne.org/podcast/the-dynamics-of-trust-how-the-global-trust-deficit-impacts-mission-the-rise-in-self-trust-the-impact-of-echo-chambers-on-gospel-outreach-the-role-of-church-in-rebuilding-trustworthy-communiti.
- Veja Cossi Augustin Ahoga, Judith Johnston, e Matheus Ortega, “Societal Influence of Christianity”, acesso em 23 de maio de 2024, https://lausanne.org/report/sustainable/societal-influence-of-christianity.
- See C. J. Davison, Missional Friendships: Jesus’ Design for Fruitful Life and Ministry (Littleton, CO: Acoma Press, 2019).
- Esta tese foi proposta pela primeira vez por Ralph D. Winter em seu artigo “The Two Structures of God’s Redemptive Mission”, Missiology: An International Review, vol. 2, issu. 1 (1974), 121–39, available online at https://frontiermissionfellowship.org/uploads/documents/two-structures.pdf.
- See the unpublished essay by Dave Benson, ‘A Theology for the 21st Century of the Church in Mission and Evangelism’ (2008), available online here.
- Este é o lema do Instituto para o Cristianismo Contemporâneo em Londres (LICC), cujo objetivo é capacitar cada cristão a tornar-se um discípulo por toda a vida, que está aprendendo a seguir o caminho de Jesus em seu tempo e lugar específicos, fazendo assim a diferença do reino e ministrando vida a este mundo que Deus ama. Clique aqui para saber mais.
- Covenant pt-15
- ‘Lausanne 4: Collaborative Action,’ Lausanne Movement, 26 May 2023, https://lausanne.org/l4/act.
- ‘The 25 Collaborate Session Gaps,’ The Fourth Lausanne Congress, accessed 23 May 2024, https://congress.lausanne.org/the-25-collaborate-session-gaps/.
- See Scot McKnight, The King Jesus Gospel: The Original Good News Revisited, rev. ed. (Zondervan, 2016); also Mortimer Arias, Announcing the Reign of God: Evangelization and the Subversive Memory of Jesus (Fortress Press, 1984), xii, 115-16.
- Para uma visão geral convincente do “Evangelho do Reino”, assista aqui ao vídeo do Bible Project [disponível em português].
- Michael Pucci, ‘The Gospel and Human Poverty,’ in Hearts Aflame: Living the Passion for Evangelism, ed. Michael Tan (Genesis Books and Eagles Communications, 2008), 219–20.
- See, for instance, Alan Kreider, The Patient Ferment of the Early Church: The Improbable Rise of Christianity in the Roman Empire (Baker Academic, 2016).