Após dois anos de uma pandemia que afetou a vida, o trabalho e o ministério, a COVID encerrou sua interferência no modo de vida europeu em 24 de fevereiro de 2022, quando os primeiros mísseis russos atingiram o território soberano da Ucrânia. À medida que as botas das forças invasoras cruzavam a fronteira e os batalhões de tanques avançavam em direção às cidades ucranianas, tornaram-se porosas as fronteiras da Moldávia, Romênia, Hungria, Eslováquia e Polônia.
Mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência vindos da Ucrânia foram recebidos de braços abertos pelas igrejas batistas da Europa, que abriram seus corações, seus lares e suas instalações. No espaço de poucas horas, a Hungarian Baptist Aid cruzou a fronteira da Ucrânia, enviando o primeiro veículo com ajuda humanitária. As igrejas polonesas empilharam os bancos no púlpito do santuário para acomodar os colchões. Os crentes romenos abriram suas próprias casas e receberam os hóspedes ucranianos. O hospital batista da Moldávia começou a cuidar dos feridos e, em poucos dias, os acampamentos batistas de verão foram adaptados para receber as famílias no inverno.
Ao som do ataque dos primeiros mísseis, a igreja despertou da apatia provocada pela pandemia. Cada refugiado era agora um hóspede tratado com dignidade, um indivíduo com necessidades específicas e pessoais. Todas as barreiras linguísticas foram derrubadas; todas as barreiras impostas pela COVID foram superadas por abraços, lágrimas, sorrisos e gestos de boas-vindas que ressurgiam após dois anos, encontrando agora vida e propósito novos.
“Vocês os reconhecerão por seus frutos” (Mt 7.16–20)
A Federação Batista Europeia é o principal órgão de coordenação da resposta batista global à crise humanitária provocada pela guerra na Ucrânia.[1] Atuando através das Uniões Batistas locais, o órgão encaminhou à região 5 milhões de euros especificamente para o auxílio humanitário. Essa quantia foi distribuída pelas Uniões a igrejas locais na Ucrânia e nos países vizinhos que atuaram na linha de frente dessa crise humanitária. A abordagem adotada pelas igrejas locais nas fronteiras ucranianas revelou uma compreensão mais abrangente da obra missionária.
Como testemunha ocular de várias respostas batistas locais e tendo recebido em primeira mão relatos dessa resposta humanitária tanto na Ucrânia quanto em países vizinhos, refleti sobre a resposta imediata dos batistas nas primeiras semanas após a invasão russa na Ucrânia, em fevereiro de 2022, e pude perceber o coração e a capacidade de adaptação/evolução da Missão Batista Europeia e de sua eclesiologia.
Um momento de capacitação
A tragédia da guerra e o desastre humanitário se tornaram um momento de capacitação para a comunidade batista – um momento de ressurgimento pós-COVID – trazendo novo fôlego às igrejas nos países ao redor da Ucrânia. Despertos bruscamente do torpor provocado pela pandemia, as igrejas lideraram as nações na resposta aos refugiados. Em muitas fronteiras nacionais, as igrejas batistas foram as primeiras a agir.
Visitei as nações que fazem fronteira com a Ucrânia e conheci muitos líderes eclesiásticos locais e nacionais que, movidos pela adrenalina, encontravam propósito no ato de servir. Mesmo enfrentando dias longos, exaustão emocional e muitas noites insones, ainda desfrutavam da real sensação de que Deus estava agindo por intermédio deles.
Os edifícios das igrejas, antes preservados como santuários de adoração, foram convertidos em santuários de refúgio. A quietude dos anos da pandemia da COVID foi subitamente interrompida quando as igrejas se encheram de mães ucranianas com seus filhos. Ecoavam nos corredores os sons produzidos pelos membros da igreja batista polonesa enquanto cozinhavam e lavavam roupas. As mesas de boas-vindas preparadas pelos romenos estavam repletas de comida, cartões de viagem, vales telefônicos e endereços com acomodações disponíveis.
Initerruptamente, os ministros e líderes regionais enviavam mensagens para coordenar essa enorme operação internacional. Surpresos, eles me disseram que a igreja estava viva e bem. Havia sobrevivido aos anos da COVID: em apenas 24 horas, havia se erguido e agora estava fazendo o que os batistas fazem de melhor: estavam ativos no serviço cristão.
Os líderes batistas estavam em ação – sem comitês ou restrições, mas com liberdade para responder à crise com o coração e a mente renovados. Os líderes eclesiásticos experimentaram a liberdade de liderar, e sua liderança foi reconhecidamente eficaz.
Nesse corpo da igreja, que era costumeiramente conduzido por uma pluralidade de líderes, talvez até por toda a congregação, a liberdade na forma de responder à crise foi algo significativo. Essa facilidade de agir com liberdade nos leva a refletir sobre as nossas estruturas e a avaliar o seu impacto na nossa capacidade de inovar e de responder, de forma livre e imediata, às novas oportunidades que surgem tanto em tempos difíceis como em nossa rotina. Em um mundo em constante mudança, no qual a ruptura é normal, como igreja, devemos avaliar como as estruturas impactam nossa capacidade de responder com urgência.
Um momento de democratização
Em pouco tempo, essa operação humanitária tornou-se o serviço de todo o povo de Deus. O princípio batista do sacerdócio de todos os crentes ganhou evidência tanto nos atos de compaixão quanto na vida de adoração da igreja. Como afirmou certo pastor ucraniano: “Colocamos a fé novamente em contato com a vida”.[2]
Novos ritmos surgiram. Cultos diários pela manhã e à noite se tornaram o padrão. Também passou a ser frequente a presença de muitos incrédulos nessas reuniões. Todos buscavam esperança e luz em meio à escuridão do desespero. Sem tempo suficiente para preparar sermões, as congregações se voltaram para as Escrituras e as liam com uma perspectiva tingida pela tragédia e pela guerra. Todos adoravam e oravam juntos com simplicidade, oferecendo esperança uns aos outros. Em lugar de falarem sobre os sermões, as pessoas compartilhavam a maneira como os textos bíblicos falavam ao seu coração – homens, mulheres, anfitriões, hóspedes, crentes e incrédulos.
Enquanto os líderes coordenavam as respostas de toda a nação e usavam suas redes ministeriais para ajudar a mobilizar as pessoas ao redor do mundo, a igreja como um todo apresentou-se ao serviço. Jovens adultos com síndrome de Down receberam refugiados ucranianos; advogados contribuíram na obtenção de passaportes; vários serviram aos refugiados como motoristas de Uber. Testemunhei pessoas de todas as idades ouvindo as histórias que os acolhidos tinham para contar. Observei os hóspedes cuidando dos jardins da igreja, lavando banheiros e preparando a comida enquanto se dedicavam aos seus próprios cuidados.
À medida que o povo de Deus reconhecia a importância e a dignidade que poderiam proporcionar ao realizarem juntos as tarefas na igreja, testemunhei uma espécie de inversão de Mateus 10, quando Jesus envia seus discípulos para proclamar sua mensagem às “ovelhas perdidas de Israel” na esperança de serem bem recebidos. Em vez de esperar ser acolhido, o povo de Deus acolheu os necessitados nos espaços da igreja e os convidou a servir também. As cozinhas das igrejas passaram a ser campo de obra missionária, pois ali serviam juntos tanto crentes quanto descrentes (até então).
Na adoração e no serviço aos necessitados, crentes e descrentes partilhavam de uma única missão, e muitos desses descrentes passaram a crer.
Um momento de integralidade
Embora milhares de euros estivessem sendo destinados à ajuda humanitária, a igreja não se esquivou de proclamar a verdade do evangelho. Tornou-se o padrão de conduta: acolher os descrentes nos cultos diários, orar por eles, distribuir Bíblias, possibilitar o acesso às Escrituras por meio de códigos QR e chamar ao arrependimento os desalojados.
É preciso explorar aqui algumas questões éticas claras sobre a vulnerabilidade das pessoas desalojadas e a abordagem usada pelos crentes. O que observei, contudo, foi gentileza e respeito, ofertas de cuidado a todos e nenhuma mudança nesse cuidado diante da recusa da oferta de cuidado espiritual. A proclamação do evangelho não era a primeira experiência do refugiado, sequer a predominante. No entanto, tenho ouvido muitos relatos de pessoas que procuram nossas igrejas em busca de refúgio e encontram esse refúgio em Cristo por meio da fé e do arrependimento.
O que vi foram incrédulos sendo guiados em sua leitura das Escrituras ou convidados a participar da adoração cristã e encontrando uma nova fé em Cristo naquele local de adoração. Foi emocionante ver que a igreja reconhecia a ajuda espiritual como um aspecto essencial do atendimento aos refugiados, porém não uma condição para isso. Essa resposta cristã foi um exemplo de missão integral que a diferenciou da resposta oferecida pelos órgãos de ajuda humanitária.
Conclusão: Um novo momento
Assim como está fazendo com o continente, a guerra na Ucrânia mudou a igreja na Europa. Muitos novos desafios e muitas novas oportunidades estão surgindo.
- A guerra revelou a importância da resposta da igreja local à crise. A igreja é um exército humanitário presente em muitas comunidades, capacitado e equipado para o serviço.
- Embora muitos milhões arrecadados tenham vindo de todas as partes do mundo, foram as igrejas locais que possibilitaram uma resposta rápida e eficaz. A mobilização de milhares de pessoas para o serviço no espaço de apenas 24 horas surpreendeu governos e ONGs.
- O serviço eficaz revigorado pela liberdade despertou o questionamento de como nossas estruturas eclesiásticas acabam muitas vezes restringindo a imaginação e a liderança de nossos pastores, mas também nos permitiu ver o que pode ser feito quando esses líderes conseguem se desvencilhar dessas estruturas e restrições.
- Nosso trabalho colaborativo com os que ainda não são crentes nos mostrou que permitir que eles sirvam conosco não reduz ou de alguma forma contamina nosso serviço como crentes. Na verdade, esse provou ser um meio eficaz de atrair as pessoas para o reino de Deus. O exemplo dessa condição de pertencimento, mesmo de modo temporário, foi importante para muitos em sua jornada da fé
Para os líderes da igreja que serviram na linha de frente desse movimento, surge agora o desafio de equilibrar prioridades novas e antigas. Retornar às antigas restrições e expectativas de seu ministério depois de um tempo de liberdade e realizações será complicado. No entanto, ‘temos uma nova oportunidade de considerar o papel dos pastores no contexto da comunidade, especialmente além das pessoas que constituem a igreja. Vimos um modelo que libera pastores para um ministério mais variado e capacita o povo de Deus no ensino, no evangelismo pessoal, no cuidado pastoral e na liderança da adoração e do serviço cristão.
Vimos também a importância da interdependência das igrejas batistas locais. Os batistas não são conhecidos por suas estruturas eclesiásticas internacionais. Nessa crise, a igreja local recebeu, de várias formas, o apoio dos órgãos nacionais que, por sua vez, receberam suporte da Federação Batista Europeia (EBF). A EBF recebeu apoio das entidades da Aliança Batista Mundial e da Missão Batista em todo o mundo. Muitos se surpreenderam que tais igrejas, normalmente independentes, pudessem criar um vínculo tão forte de unidade em um momento de grande necessidade.
NOTAS FINAIS
- ‘Ukraine Crisis: Praying for Peace in Ukraine,’ European Baptist Federation, accessed March 31, 2023, https://www.ebf.org/ukraine.
- Nota da Editora: Veja ‘Fé, Saúde, e Amor Colaborativo,’ por Ted Lankester no número de Janeiro de 2021 do Análise Global de Lausanne , https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2021-pt-br/fe-saude-e-amor-colaborativo.